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PARTILHAR SENTIDOS, PERMITIR MUDANÇAS - PARTE1

Por Beatriz Brusantin

“As pessoas tem muito medo da mudança, não deveriam ter porque a vida é feita de mudanças” (Gabriela Leite, 2011)
 

Em 30 dias de residência artística junto das profissionais do sexo, da Aprosmig, da Rua Guaicurus e de diversos acervos que guardam registros históricos sobre a prostituição, a definição de Puta dada por Gabriela Leite reverberou em mim de forma especial - ser puta é encarar de frente a hipocrisia que vivemos nesse mundo sobre sexo. Porque parece que sexo é algo que não existe para as pessoas. Todo mundo faz, mas você sempre tem que esconder a existência da sexualidade e do sexo. (Gabriela Leite, 2011.)
 

Eu, mulher, branca, 38 anos, doutora em História, paulista residente em Belo Horizonte, talvez almeje aqui com esta residência deixar um início de uma reflexão que deve com urgência proporcionar densidade temporal/histórica às longas trajetórias das prostitutas. Como podermos mudar, desconstruir nossos “pré-conceitos” estruturais advindos de milênios de anos, se não esmiuçarmos ponto por ponto as ligas que compõem estas estruturas sólidas, duradouras, maleáveis, sim, mas que veicula mui lentamente o tempo, citando uma expressão do historiador Fernand Braudel.
 

Como falar de Museu, se não escavarmos profundidades? Se não alcançarmos as bases das estruturas que sustentam preconceitos/estigmas/moralismos? Falo de acessarmos as memórias? Não necessariamente, porque memórias também são construções, compõem esquecimentos e se alimentam de referências. Talvez devêssemos pensar sim a respeito das referências, dos sentidos, dados adquiridos, reproduzidos, inexistentes. Propor um Museu do Sexo das Putas não é simplesmente propor estéticas visíveis, que seja visibilidade. A estética (no sentido etimológico, de percepção) é a base da vida social, “ela não é a azeitona da empada, é a empada toda”, como apontou Ulpiano Meneses.  Ao mesmo tempo, um objeto não é só a embalagem, ele significa cultura, que é algo que se vive.
 

Um Museu precisa vir com um diálogo consciente do passado, do que foi, e do que não foi. Um Museu no século XXI, necessariamente precisa falar sobre densidade temporal, precisa entender o que isso significa e qual a importância disso para sujeitos e sujeitas da cultura. Precisa falar de hipocrisia, precisa falar sobre amor, precisar falar sobre cuidado, sobre passado, presente, futuro. Precisa falar aquilo que ainda não foi falado, porque ainda não houve desconstrução daquilo que nos fizeram ser o que somos.
 

Durante 30 dias respirei prostituição. Tentei aprender a respirar de forma nova. Porque respirar da forma a que fomos obrigados, por séculos, não se desaprende em 30 dias. Talvez nem mesmo em uma vida. Camadas são superpostas sobre nossas individualidades/subjetividades - inclusive sobre as pessoas alvos de estigmas, preconceitos, exclusão, violência - de um jeito tão perverso que disfarçadamente provoca repetições.  
 

Minha contribuição ao Museu das Putas, nesta residência de bela iniciativa, foi tentar através de uma pesquisa de fôlego intenso e rápido de registros da prostituição ao longo do tempo, compor um banco de dados de Jornais mineiros e, algumas capitais brasileiras, que criaram narrativas ao longo destes dois séculos acerca da prostituição. A partir desse conjunto teremos matéria prima significativa para embasar historicamente a luta da Aprosmig e das profissionais do sexo e produzir para este site conteúdos analíticos, reflexivos, sensíveis, experimentais para erguemos novos fundamentos.
 

Para principiar esta jornada, trago aqui, suscintamente para não exaurir o leitor, alguns pontos metodológicos e históricos. Metodologicamente, ocorreu um recorte documental e temporal. Com poucos dias para realizar uma pesquisa, optei por investir na busca de registros da imprensa mineira do século XIX ao XXI. O foco foi compreender as narrativas públicas produzidas sobre a prostituição e desfazer as camadas que fomentam a sobrevivência do estigma, do preconceito, da criminalização, do moralismo, do machismo, da exclusão e da negação das profissionais do sexo enquanto dignas de direitos e cidadania. Consultei para a pesquisa os acervos da Biblioteca Pública de Belo Horizonte (BPBH), Arquivo Público da cidade de Belo Horizonte (APBH), Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN) e Acervo On-Line da Folha de São Paulo. O Arquivo Público Mineiro também foi consultado, mas não a hemeroteca.
 

Iniciemos com o velho que ainda é novo. Numa 5ª feira, 30 de abril de 1835, o Jornal Astro de Minas, em artigo intitulado “He de absoluta necessidade que se promova a reforma da Nação Brasileira”, apresenta a máxima perpetuada:
 

“ he innegavel que os nossos costumes estão em demasia corruptos, e hão mister ser mudados. O homicídio, o roubo, e perjúrio, a venalidade, a prostituição, e outros muitos hábitos viciosos que estão arreigados entre nós, e infeccionado todas as classes da sociedade, provão exuberantemente o nosso misero estado de corrupção e aviltamento. Esta igualmente demonstrado pela experiência que as leis repressivas são por si sós, insuficientes para formarem bons costumes.”

 

Observem como a narrativa, já no início do século XIX, em Minas Gerais, entrelaçava, em linha sucessiva, crimes, falsidade, uso de valores de forma ilícita e prostituição. Ações que sustentavam o caráter corrupto e baixo do recém Brasil. E como cereja do bolo, vem o dito de que as leis repressivas eram insuficientes para formarem os bons costumes. Algo mais precisaria para sanar todas estas míseras afrontas – era preciso uma concepção de Estado, de nação e de cidadania que excluísse todas estas bactérias “anti- bons costumes”. Como era algo que infeccionava todas as classes, não poderiam exterminar todas as classes. Então, a solução necessária seria forjar uma cultura que negasse estas mazelas. Era necessário um projeto de nação que colocasse a prostituição no seu devido lugar, onde a narrativa já indicara. Era preciso regras, posturas e códigos morais que ordenassem essa sociedade a conviver, mas a negar tais infecções.
 

Em 1888, no jornal A União com sede em Outro Preto, publicou-se as seguintes posturas municipais a serem seguidas em Juiz de Fora (MG): “Das infrações contra o decoro e moralidade pública. É proibido sob pena de multa de 30$000 e prisão por dias: 1. Escrever dísticos ou fazer desenhos immoraes em qualquer logar accessível à vista do público. 2. Tomar atitudes, fazer gestos ou proferir palavras indecentes; apresentar ou vender quadros de figuras ofensivas à moral pública. 3. Representar qualquer artista scenas theatraes ou pantominas, sem especial outorga do presidente ou com violação das recomendações escriptas deste. 4. Ter casa pública ou hotel destinado a prostituição, ou em que seja esta consentida pelo proprietário publicamente e sem recato. 5. Affectarem publicamente as mulheres de vida airada a sua prostituição pelo trajar, gargalhadas, palavras, procedimento ou por qualquer outro modo, que ofenda o decoro publico.”

 

Fiz questão de destacar alguns itens a mais do que se referia à prostituição porque compreender a imposição moral em cima das prostitutas, na verdade, é alcançar o cerceamento e controle de toda uma cultura pública, de rua, da crítica, da ousadia, da liberdade, da sensibilidade, da sexualidade, do diferente. As imposições das posturas e códigos vem na esteira da normatização, da ordem e também da negação. É importante perceber que negar é diferente de eliminar. A prostituição se manterá viva, sem ser crime em si, todavia será considerada um mal a ser perseguido, controlado, reprimido. Uma forma nítida de demonstrar por meio das instituições, do cotidiano, da mídia e do poder que mulheres livres sexualmente e autônomas economicamente devem ser manter na subalternidade.
 

Diante disso, caras leitoras, caros leitores, começamos de leve a desatar apenas um pequeno nó de compreensão a respeito da realidade brasileira. Isto é apenas o cheiro do aperitivo do que ainda virá. Acompanhem. (continua...)

Beatriz Brusantin - Belo Horizonte /MG

Doutora em História Social, já atuou como atriz, dançarina, professora e pesquisadora. Traz na vida profissional o diálogo com a cultura a arte na perspectiva da “história vista de baixo”. Tem experiência de trabalhos escritos, fotográficos e audiovisual com a cultura africana, cultura popular, mundo do trabalho rural e urbano e patrimônio cultural imaterial brasileira. Reconstruir histórias e memórias em diversos formatos é seu principal caminho profissional.

PARTILHAR SENTIDOS, PERMITIR MUDANÇAS - PARTE2

Por Beatriz Brusantin

Um passado amargo só persiste porque se transforma em estruturas culturais fortes com pouca maleabilidade e abertura para quebras. Sentir a história das profissionais do sexo em Belo Horizonte durante esta residência, nos hotéis da rua guaicurus e nos acervos dos arquivos da cidade, fez-me acessar o tempo e o espaço denso da história mineira a respeito das mulheres prostitutas.
 

Compreender os alicerces que sustentam um passado no presente é motivação urgente para construção do Museu do Sexo das Putas. Como mostramos na publicação anterior, desde o ano de 1835 em Minas Gerais a imprensa imperial, logo após a independência do Brasil, constrói uma narrativa depreciativa da prostituição ligando-a aos crimes de ordem política, social e econômica. Em 1888, em Juiz de Fora, as posturas municipais buscaram regular e controlar os hóteis de prostituição e o comportamento das prostitutas nas ruas. 
 

A passagem do final do século XIX para o XX é marcada por diversas transformações históricas. Entre elas, o processo de ordenação da moral e dos costumes sustentará o início da industrialização, da urbanização e da consolidação da república. Para compreender este processo em âmbito nacional, há o trabalho excelente da historiadora Margareth Rago, “Do Cabaré ao Lar: a utopia da Cidade Disciplinar – Brasil 1890-1930”. Obra de referência, seu estudo abarca as nuances do processo de modernização e seus processos disciplinadores como sustentáculo para a formação do operariado e o mundo do trabalho industrializado e higienista. Neste contexto, segundo Rago, à mulher foi destinado o lar, a devoção à família e a submissão ao sexo masculino. Quanto às prostitutas, essas deveriam estar conscientes da necessidade de manter sua invisibilidade na sociedade moderna, não poderiam circular livremente pelas ruas e deveriam passar por exames indesejáveis para comprovar que estavam livres de doenças.  A elas eram cerceados os direitos de liberdade no público e no privado em nome da ordem, da moral e dos bons costumes da modernidade.
 

Em Minas Gerais, especialmente, em Belo Horizonte, as pesquisas de Lucas Pereira, “No intuito de produzir influência educativa: delegacia de costumes e a prática do meretrício em Belo Horizonte (décadas de 1920 e 1930)” e de Marina Silva, “A moral e os bons costumes: a experiência da cidade nas narrativas policiais (Belo Horizonte, 1897-1926)” trazem interessantes reflexões sobre a história da prostituição, seu controle e ordenação, no final do século XIX e início do XX na cidade de Belo Horizonte. Tomando como inspiração algumas descobertas desses dois autores e intercruzando com a vivência na Rua Guaicurus, percebi o quanto a cultura do século XIX a respeito da prostituição adentra no século XX e como a mesma se aperfeiçoa na repetição no século XXI.
 

Se nós percorrermos a Guaicurus hoje em dia, há uma invisibilidade das mulheres profissionais do sexo. A movimentação é, sobretudo, do comércio e serviços e dos homens que sobem e descem os hotéis. Essa paisagem não é, de forma alguma, descolada de um processo histórico denso e longo. O mesmo vale para a cultura local a respeito da região da Rua Guaicurus – carregada de estigmas em torno do violento, do submundo e da imoralidade. Se olharmos para o passado, constataremos como minuciosamente isso foi sendo construído em narrativas e “políticas” policiais.    
 

A política de controle e vigilância sobre as prostituta engrossou e aperfeiçoou as posturas municipais do século XIX. Um dos principais pontos de controle e ordenação ocorreu em cima do sujeito e do espaço em volta da prostituição e/ou meretrício. O embate nesse sentido ocorreu (e ocorre até hoje) com a ação, na maioria das vezes, truculenta e desproporcional da polícia. Em 1929, a polícia entrava nos hóteis e prendiam as mulheres profissionais do sexo adjetivando-as de decaídas. Como num teatro, o título do artigo não deixou dúvidas de que a narrativa era pra dizer que “os guardas” eram necessários para ordenar e estabelecer a paz - “As Marias ‘amarrotaram’ o Fellipe – mas os guardas entraram em scena e...” (Folha da Noite, 2/04/1929). Eram Marias prostitutas que estavam sendo reprimidas, sobretudo, por serem livres e não se encaixarem de acordo com a moral imposta desde os tempos imperiais. Assim, foram presas Georgina Maria da Conceição, Anna Maria Ferreira Gomes, Maria Izabel, Floripes Pereira Gomes e Brasília Ribeiro dos Santos e Maria Andrade, por “fazer escândalo no cabaret” (Folha da Noite, 2/04/1929). A pergunta que precisamos fazer é: qual era a real intenção dessa repressão? Certamente não era auxiliar às profissionais em seu ambiente de trabalho, mas sim mostrar a força que a polícia possuía em controlar e reprimir as mulheres no espaço privado e público. Exemplo disso foi a prisão, no mesmo ano, do casal José Silveiro da Silva e Adalgisa de tal, meretriz, por namorarem com “falta de pudor” em via pública (Folha da Noite, 1/04/1929). Juntando as peças, começamos a concluir em que aspecto cultural se sustentava de fato o “problema” – era na moral, no pudor.
 

Não distantes estamos desta realidade, fato é que 50 anos depois, na cidade paranaense de Ourizona, em 1981, um delegado de polícia escancarou a raiz do patriarcalismo ao proibir todas as mulheres de sair de casa após as 22 horas. Para além de reprimir o trotoar de prostitutas e os namoros “avançados”, o alvo do violento controle eram as mulheres (Folha de São Paulo, 21/11/1981). Desde o início do século XX, fazia parte da construção da modernidade e republica industrial brasileira, fortalecer o poder patriarcal e com ele a cultura machista. Nesse ponto é imprescindível destacar que até a atualidade a prostituição em si não é ilegal. Os fatos, portanto, foram sendo construídos ao longo da história por detrás da lógica do controle e da repressão, e não do extermínio. Isso é muito significativo porque alimenta a lógica medieval – cristã católica- da prostituição como um mal necessário e a lógica machista e patriarcal de que todas as mulheres, e principalmente, as prostitutas devem estar submissas ao homem. Qualquer ação contra a luta pela regulamentação e reconhecimento da profissão das prostitutas alimenta justamente essas lógicas.
 

Se o alvo principal das autoridades policiais focava as sujeitas, os espaços também deveriam ser controlados e deslocados para zonas específicas. Todo esse processo foi sempre pautado por contradições e embates e, na verdade, se fez sempre repleto de complexidade, até os dias atuais. Nessa pisada, uma hora os delegados fechavam os Cabarets, outra hora os Juízes abriam (até hoje – O Tempo, 23/10/2013), em outra o Tribunal da Relação fechava pelo sossego público e moralidade das famílias. Assim, na década de 20 do século XX, em Belo Horizonte, se deu numa real “Guerra aos Cabarets” (Diário de Minas, 23/02/1921). Se em alguns momentos a busca foi pela cassação do funcionamento dos Bordéis, no final da década de 20, combinou-se controle e repressão e se desenvolveu um movimento de localizar o meretrício em áreas afastadas do centro e/ou próximas de bairros operários (O Diário, década de 20). Para os jornais, tratava-se de um moralizador ato do delegado Waldemar Loureiro que “por certo terá o aplauso de toda a população honesta da capital, cansada de ser afrontada com a falta de moralidade e compostura do meretrício, que por aqui (em Belo Horizonte) campeia em caráter epidêmico.” As narrativas eram muito bem construídas alimentando uma cultura preconceituosa, criminalista, epidêmica a cerca das prostitutas e seu ofício. E como se não bastasse, essa cultura serviu como argumento para dar carta branca à violência social e policial durante todos esses anos (O Tempo, 27/06/2003).  Prostituição não é caso de polícia. Polícia não deve se colocar como “moderador” da profissão do sexo (O Tempo, 12/05/2001).  É justamente esta realidade presente que precisamos mudar a luz dos processos históricos que nos deixaram marcas, muros e cicatrizes. (continua...)

Controle e repressão das mulheres e dos espaços de prostituição

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